eu não sei viver aqui – parte 1

“me desculpa, eu não quis te assustar. eu vim até você porque hoje eu me vi num reflexo e também me assustei. um senhor foi rude e disse coisas muito duras pra mim. eu não o culpo, eu não pude discordar… hoje eu tentei levar uns carros, eu pedi pra lavar louça ou o chão de um restaurante, mas não pude. porque eu comecei essa campanha, pão de queijo nunca mais, e meu objetivo é fazer de tudo pra conseguir um prato de arroz e feijão pro jantar”

e foi assim que o desconhecido encontrou meu ponto fraco.

eu tava por aí


seria legal se eu fugisse dos clichês dos caderninhos de frases, da obviedade, da breguice. mas eu quero casar com aquele bebê vestido de galo, com o novo cd do chico, com o último cara que beijei, com o porteiro que me dá bom dia sorrindo às 6h da manhã chuvosa, com aquele milkshake de ontem, com minhas amigas lindas, com aquele site de confeitaria, com o lenine, com o show do paulinho, com o history channel, com o macaco do planeta dos macacos, com minha internet rápida e com os ponteiros da balança quando eles estão cada vez mais à esquerda. essa sou eu. eu sou os olhos revirando e a auto-crítica depois de falar uma coisa sem pensar. eu sou as frases ditas em momentos inadequados. aliás, eu sou as frases ditas a qualquer momento. eu sou o aqui-e-agora. quando descubro uma banda nova digo que é a melhor coisa que já ouvi, quando assisto um bom filme tenho certeza que me sinto daquele jeito, quando gosto de um autor quero me tornar ele e quando encontro um abraço, tenho certeza que não quero estar em nenhum outro lugar que não ali.

e é claro que eu não quis estar em nenhum outro lugar por eternos três segundos naqueles braços e depois não tive vontade de voltar quando estive longe. não insisti pra voltar, não liguei, não chorei, não lamentei. foi só isso: eu tava ali, você também e de repente estávamos nós e de repente não estávamos mais. foi só isso. foi isso? não serei leviana dizendo que foi pouco nem me equivocarei acreditando que foi muito. então acho que apenas foi. às vezes o que falta na gente é isso mesmo, ignorar o peso da intensidade. eu sei que quero você perto se você tá aqui, e longe se não tá. aprendi a não me distrair da vida que eu tenho pra pensar na que teria. nessa vida a gente acaba respirando fundo algumas vezes, levantando a cabeça, limpando o rosto e indo em frente. sempre me encontrando nuns braços, nuns abraços, numas risadas e numas dores por aí. então tá tudo bem.

quer saber?*

ele não ligou no dia seguinte. e nem no outro e nem depois. e ninguém foi apedrejado, nenhuma parte do meu corpo mofou, meus amigos continuaram me mandando e-mails e respondendo minhas chamadas. aquele mocinho me pediu em namoro, da mesma forma como fez antes da falta de ligações. no Japão o sol nasceu primeiro que aqui mesmo assim, as árvores continuaram a transformar gás carbônico em oxigênio durante o dia e o inverso durante a noite.

a todos os outros, pouco importa se gemi, se tremi, o quão alto e por quanto tempo. nem eu mesma saberia descrever. ele não ligou no dia seguinte. alguns dias depois, fui eu que liguei. não me lembro exatamente porquê, mas provavelmente disse que me deu vontade. e mais uma vez não fui apedrejada, não mofei, mantive os amigos e a natureza se manteve em seu curso. quando as peças de roupa foram ao chão, me despi também de todos os protocolos, de todas as opiniões não solicitadas que poderiam vir depois. bem antes disso, cruzei as pernas para um lado e depois para o outro e me despi do peso de ser uma mulher, dominada e à espera. cruzei as pernas, e olhei dentro daqueles olhos.  cruzei as pernas como fêmea, olhei nos olhos como dominadora. cruzei as pernas e o limite, olhei naqueles olhos e vi o que eu quero ser: alguém que não espera.

ele não ligou no dia seguinte. ou talvez tenha ligado, quem sabe? a memória me falha com coisas pouco importantes, porque a mim só importa que gemi, que tremi, alto e por tempo suficiente. pra me despir de todos os protocolos e ligar no dia anterior.

*fuck protocol. i’ll go myself – jax, mortal kombat: legacy
 
 
 

retorno

de manhã ele olhava meu documento e dava bom dia. raramente eu respondia, porque ninguém é gente às 7h15 da manhã. e considerando que eu tinha 13 anos, eu não era gente hora nenhuma do dia. 3 anos depois, além de olhar meu documento de manhã, ele cantava alguma coisa qualquer do amado batista enquanto abria a porta e me sorria com um “até amanhã”. e aí pouco a pouco nosso relacionamento foi chegando naquele ponto complicado de se ter com um porteiro: quando ele conhece todos os meus bom dias, todos os meus adeus, todos os meus cansaços de segundas e todos os meus alívios de sextas, e pôde concluir que um dia eu iria amar um sujeito de sorte.

virgu, você nunca esteve tão certo. hoje mesmo eu estou amando um homem que é mesmo muito sortudo, tem muita sorte não saber as coisas ridículas que penso quando lembro dele. porque só mesmo com muita sorte pra não precisar conviver com todas as inseguranças que a simples existência dele trazem à tona. o que você esqueceu de dizer, virgu, é que pro mundo funcionar tem que haver o equilíbrio, e que pra ele ser o sortudo que tem o meu amor, eu tinha que ser a azarada de estar amando…

*uma carta de 2008, mas que poderia ser de 2011.

**sim, eu me rendi.

marisa monte você me paga

quem me vê sorrindo… não lembra que antes de mim tiveram milhões. foi aquele primeiro cd cor de rosa que abriu as portas aqui dentro, e daí por diante a sensação de amargura em minha boca nunca mais foi embora. e depois veio chico e sua voz melancólica, seus olhos verdes, sua dor penetrante.  mas antes deles foram milhões. e depois de nós haverão milhões.

quem me vê sorrindo… não sabe que li muito augusto dos anjos enquanto crescia, muito veríssimo enquanto entendia, muito neruda enquanto amava e muito stephen king enquanto esquecia. até que passei a escrever enquanto sofria. até entender que não vale de nada. até entender que é só mais uma coisa que não muda. até entender que foi só mais uma tentativa. até entender que eu sou só mais uma, que eu sou só minha, que eu sou só.

ressaca moral is in tha house

veio aquele carro grande, acelerou e parou na minha frente cantando os pneus. “vagabunda”, pensei. “como é que é?” ela perguntou e eu percebi que não pensei tão baixo assim. e aí uma série de palavras não muito cristãs tomaram conta da minha cabeça, enquanto eu me esforçava pra manter a  calma e explicar pr’aquela senhora que ela não podia fazer aquilo.

eu fui engolida. o mundo piscou p’ra mim e eu achei ele babaca por achar que podia me seduzir assim. contei p’ras minhas amigas que tinha um tosco me dando mole e elas riram de mim, porque pegar aquele mundo tosco era o novo preto. eu troquei de amigas. mas ele me seguiu, sorriu com aquela boca cheia de dentes, falou algumas gracinhas, eu já ‘tava meio bêbada mesmo e com muito remorso eu confesso: o mundo me pegou de jeito. hoje às 8h15, o homem que me vê todas as manhãs parou do meu lado e aquela senhora estava nos olhos dele. aquela senhora, aquele carro, aquele “vagabunda”. ele cheirava a borracha queimada como cheiraram os pneus do carro dela meses atrás. abriu um sorriso, limpou meu retrovisor e me desejou um bom dia. me puxar pela janela e me dar um soco no olho teria dado na mesma. porque eu desviei o olhar, sorri de volta mas fiquei sem entender por uns segundos o que tinha acontecido. e lembrei daquela noite com o mundo, mas não consegui me lembrar quando foi que me entreguei à ele. não consegui me lembrar como ele deixou essa marca em mim e  como eu me deixei levar por ela, lembro que não estava sozinha.  onde posso denunciar esse homem que sorri pra mim? como puní-lo por ter interrompido meu mau-humor matinal, por perturbar meu bad hair day assim, sem pedir licença? eu não soube o que dizer, mas olhei em volta e as pessoas estavam fechando seus vidros e eu pude reconhecê-las: elas um dia enjoaram de preto e sorriram de volta pro primeiro que fez meia-dúzia de promessas falsas. elas estavam todas com olheiras da noite passada porque continuam dando moral pra ele. o mundo me ensinou a dar jeb-direto-gancho-cruzado, mas eu não soube reagir diante de uma cortesia (nunca é tarde demais).

 

 

“acho que a vida anda passando a mão em mim” – viviane mosé

[209] dona odete

friorenta, ela abre as cortinas pra deixar a luz do sol entrar e se sentir mais próxima do mundo todo. acha bom morar no alto, ver os carros passando quando o dia começa, as crianças correndo quando voltam do jogo e os bêbados procurando seus carros na saída do bar. qualquer coisa por algum barulho que a lembre que o mundo ainda gira. um dia ela conheceu alguém com quem teve filhos. talvez o tenha chamado de amor, talvez quando se conheceram, ou quando fizeram as pazes. talvez quando o viu fechar os olhos pela ultima vez. depois viu que não haveria pior apelido, e passou a chamá-lo de qualquer coisa que fizesse referência às suas raízes e o diminuísse ao mesmo tempo. ora por raiva, ora só pra tentar esquecer. às oito liga a tv e assiste ao jornal. às dez veste um casaco, coloca os óculos escuros e vai ao mercado. volta conversando com qualquer um que se ofereça pra ajudar com as sacolas. e anda cumprimentando o porteiro, as babás, os faxineiros do prédio ao lado. depois se senta num banquinho qualquer pra ver a vida dos outros, mas volta sempre antes do jornal da tarde, da novela, do jogo de futebol. não gosta dos jogos, mas dos jogadores: “eles são tão bacanas!” diz.  então às vezes ela sente uma preguicinha de sair no vento e decide fazer um pãozinho, ou um bolo com café. e faz, e distribui entre os vizinhos. dos sábados ela gosta! é quando pode andar só com as roupas de baixo pela casa, ja que a empregada não vem. aos domingos, se sente sozinha… anda um pouco pela casa, observa as fotos, os desenhos na parede e pensa em fazer algum bordado. mas desiste tão logo percebe não saber onde deixou os óculos. chorando, faz algumas ligações, mas não encontra disponibilidade. vai até a janela procurando algum movimento só pra dizer: “vem aqui me visitar! a gente fica sozinho e sente uma coisa… né?”

é.

o que me leva a pensar que,

algumas pessoas têm olhos que mudam de cor. que meus olhos mudam de cor ao longo dos dias. que algumas pessoas enxergam tudo sem cor, outras só trocam de cor. que algumas pessoas enxergam mal de perto, outras precisam que o objeto se aproxime para enxergar. que eu preciso estar perto pra  enxergar. e que quem não tem colírio, usa óculos escuro.

e isso pode dizer muito sobre alguém.

eu não nasci de óculos, eu não era assim. – paralamas do sucesso

o asfalto é de um cinza bem escuro, emoldurado por linhas brancas. a cidade é de um marrom avermelhado que só os sapatos candangos podem identificar. as árvores, já secas, emolduram o cenário. ainda é cedo e o céu não se pintou completamente de azul, somente o suficiente pra que se veja a esquadrilha da fumaça treinando suas acrobacias, cortando o ar primeiro em linhas retas, depois pontilhadas, e fazendo uma curva no final, pra reiniciar o trajeto. e mesmo assim a cidade é tão cheia de cores.

o que me leva a pensar que talvez, os meus olhos coloridos, sejam mesmo as janelas da alma.