now you want to… relax – parte 1

acho que na vida cada um tem seu momento na cadeira do oftalmo. quando ele coloca uma lente que te faz ver muito mal e depois muito bem e então uma terceira que te coloca em dúvida até que você perceba o quanto enxergava tudo borrado. eu olhei pela segunda lente cerca de um ano atrás.

quando o mundo virou, pra mim, uma questão de planejamento, eu achei que seria livre. que estar fora da minha zona de conforto, que ser a estrangeira, a que visita, seria transformador. e foi. e de repente colocar uma mochila nas costas e viajar o mundo contando moedas, ou ainda trabalhar em qualquer coisa por aí e viver do que a terra me desse fazia todo o sentido do mundo na minha cabeça. enquanto eu via as imagens de quem passou por isso e pensava no quanto poderia ser aprendido, no quanto era aprisionador me manter conhecendo somente uma língua, uma (?) culinária, uma democracia, parecia que eu era pequena demais pra mim mesma. e depois do fim do mundo vieram os planos: tailândia, cuba, venezuela, tibete, chile.

deve ter sido uma espécie de melhora da morte, porque alguma coisa não saiu como eu imaginava. mas foi só quando as palavras saíram da boca de outra pessoa que eu percebi o quanto essa tal possibilidade de conhecer o planeta com uma bota de trekking e uns trocados no bolso pra mudar a minha vida não era a melhor realidade que eu queria enxergar.

minha mãe costuma dizer que não precisa viajar pra conhecer o mundo. que o national geographic faz tudo isso sem que ela precise correr o risco de andar perto de abismos, por exemplo. eu ainda acho que a experiência proporcionada por uma viagem é única, e que esse foi um dos top3 ganhos com a globalização. mas foi assistindo “A Map for Saturday” (De mochila pelo mundo, no Brasil) que eu vi todos os meus sonhos de viajar com pouco indo por água abaixo. aquele brilho nos olhos quando eu ouvi o colega contar sobre sua experiência de voluntariado no oriente de repente viraram um choro sofrido. ao questionar por quê o americano largou um emprego bom, sem exploração para ir até aquele país em que eles não podiam nem mesmo expressar suas opiniões livremente e tido como resposta que talvez ele não quisesse ter um emprego e então estava “só” viajando, um sorriso se desfez numa frase dilacerante: “right. just now you want to… relax“. quem me conhece sabe que eu tenho muita dificuldade pra lembrar de um filme que só vi uma vez na vida. e acho até que muitos detalhes desse documentário eu nem faço idéia de que existem. mas eu seria capaz de reconhecer aquele vendedor de livros do nepal daqui a mil anos.

aí veio a copa do mundo, inundando o Brasil e revirando nossas profundezas, trazendo à tona uma vontade de mudança da nossa população. uma indignação, uma repentina consciência política e… um tour na favela. e vieram também muitos outros eventos paralelos: vieram duas suíças com suas realidades distintas e insanas, veio minha amiga falando da “exotização” de culturas, veio uma proposta de viagem pra comunidade vulnerável. bem. não é como se no Brasil não tivéssemos comunidades vulneráveis, oportunidades de voluntariado, de retiros espirituais. fato é que aquele filme havia me feito perceber todas essas coisas de um outro jeito.

ter completado o ensino superior num país em que isso é considerado elite, dar às costas à esse esforço pra ter 365 sábados “fora” da minha zona de conforto me torna tão diferente assim daquela suíça que queria viajar a américa latina com 400 euros e ser professora de meditação em algum lugar por ali? decidir não pôr em prática a profissão que eu pude escolher sozinha, pra assistir a quem não teve opção e usar isso como enriquecimento pessoal e espiritual? com que propriedade eu me acho apta a criticar quem vem até aqui ver pobre tomando banho de bica enquanto curto fotos de gente comendo animais exóticos e indianos lavando roupa suja e vaca no ganges pelo instagram? as manifestações culturais de cuba como forma de resistência não são meu entretenimento. tibetanos lutando em locais de difícil acesso não são pra minha elevação espiritual. o ouro que não tenho no Brasil mas compro de quilo no oriente médio não é pra minha ostentação. afinal, quantos “tour na favela”, nas MINHAS favelas, eu precisaria pra enxergar isso?

e então eu já não precisava mais sair do país pra sair da minha zona de conforto, até porque não é exatamente desconfortável viajar com equipamento alemão de ponta e a certeza de que eu posso voltar pra casa quando cansar. isso não quer dizer que eu nunca farei essas viagens. talvez eu faça. é até bem provável que eu faça. mas que ao menos todo olhar que eu fite seja como o daquele nepalês no filme. amém.

Bruno-de-Lucca

“we would like to do a lot of things in our lives but we don’t have the way”

A Map for Saturday: https://www.youtube.com/watch?v=1-Gt3oqYnyg

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