sopa de letrinhas

e por falar nisso, andei pensando sobre gramática. se eu pudesse ser uma palavra eu seria um verbo. direto, pontual, essencial. não um verbo muito poético ou subjetivo. nada dessa coisa de “ser”, “pensar” ou “ter” porque esses prolongam a discussão. eu escolheria ser um verbo simples, do tipo “caminhar”. e eu pediria a mão de um substantivo bem bacana, tipo “calçada” e teríamos um filhote preposição. seríamos uma família feliz caminhando pela calçada. ou eu poderia ter um cotidiano solitário, como “escovar”, ora os cabelos, ora os dentes. sem uma relação muito exclusiva que é pra não desgastar. e eu fugiria de advérbios como o diabo da cruz. advérbios têm aquele efeito bigorna acme, são pesados e estão sempre acompanhados de muita responsabilidade. um advérbio é rancoroso, é petulante, não sabe o sentido de movin’ on, não deixa pra lá, é sempre cheio de si. não gostaria de me perder nos quandos, nos ondes, nos comos. porque de questionamentos essa vida de agora já tá cheia.

eu tava por aí


seria legal se eu fugisse dos clichês dos caderninhos de frases, da obviedade, da breguice. mas eu quero casar com aquele bebê vestido de galo, com o novo cd do chico, com o último cara que beijei, com o porteiro que me dá bom dia sorrindo às 6h da manhã chuvosa, com aquele milkshake de ontem, com minhas amigas lindas, com aquele site de confeitaria, com o lenine, com o show do paulinho, com o history channel, com o macaco do planeta dos macacos, com minha internet rápida e com os ponteiros da balança quando eles estão cada vez mais à esquerda. essa sou eu. eu sou os olhos revirando e a auto-crítica depois de falar uma coisa sem pensar. eu sou as frases ditas em momentos inadequados. aliás, eu sou as frases ditas a qualquer momento. eu sou o aqui-e-agora. quando descubro uma banda nova digo que é a melhor coisa que já ouvi, quando assisto um bom filme tenho certeza que me sinto daquele jeito, quando gosto de um autor quero me tornar ele e quando encontro um abraço, tenho certeza que não quero estar em nenhum outro lugar que não ali.

e é claro que eu não quis estar em nenhum outro lugar por eternos três segundos naqueles braços e depois não tive vontade de voltar quando estive longe. não insisti pra voltar, não liguei, não chorei, não lamentei. foi só isso: eu tava ali, você também e de repente estávamos nós e de repente não estávamos mais. foi só isso. foi isso? não serei leviana dizendo que foi pouco nem me equivocarei acreditando que foi muito. então acho que apenas foi. às vezes o que falta na gente é isso mesmo, ignorar o peso da intensidade. eu sei que quero você perto se você tá aqui, e longe se não tá. aprendi a não me distrair da vida que eu tenho pra pensar na que teria. nessa vida a gente acaba respirando fundo algumas vezes, levantando a cabeça, limpando o rosto e indo em frente. sempre me encontrando nuns braços, nuns abraços, numas risadas e numas dores por aí. então tá tudo bem.

god bless jean boghici

se tem uma época que a gente tem chance é a de universitário. diferentemente dos tempos de escola, você já dirige, já pode comprar bebidas, já chega depois de 2h em casa, já não vê diferença entre terças, quintas, ou sábados pra sair. eu fui uma adolescente muito comportada, considerem.

então. universidade. eu poderia ter gastado essa época lambendo o chão de um churrasco, dormindo abraçada com o cooler, dançando em cima da mesa do boteco, participando da ocupação da reitoria, ficando nua no manifesto pró geisy arruda. podia ter pegado um professor, feito dreads, tatuagem, ido pra piri, aprendido a andar de bicicleta. mas eu preferi passar meu tempo na universidade estudando e me apaixonando e obviamente me fodendo de verde, amarelo, azul, vermelho, lilás e todas as demais cores do movimento homossexual – outro que eu poderia ter participado e preferi não. e se na universidade eu me apaixonei, quando saí dela eu amaldiçoei toda essa minha ignorância.

mas hoje, vejam só, eu me rendi ao velho clichê dos amores que trazem sofrimento e do sofrimento que traz aprendizado. hoje eu cantarolei trechos de uma música e meus olhos se encheram d’água. e foi aí que eu me toquei de que além de ter me tornado mais forte, a dor também me tornou sensível.  acho que foi aos doze anos, não tenho muita certeza, quando primeiro eu vi a chuva e em seguida toquei o mármore frio de brecheret. foi ali que eu me entreguei de vez. agora já não sei se poderia viver sem me emocionar ouvindo om kalsoum. sem encher os olhos de água cantarolando um samba. ou pior: eu não sei se gostaria de viver assim. 

vocês não entendem nada

 naquele dia em que eu respondi pra você, você entendeu que eu era fácil. quando você chorou de amor e eu disse que ia passar, você deduziu que eu sou desapegada. na hora que eu deixei aquela festa com a desculpa de ter outro compromisso, você entendeu que eu ia encontrar um cara, provavelmente aquele que você me viu conversar noutro dia. quando eu atrasei pra chegar à aula de manhã, você riu da minha cara de ressaca e disse que eu precisava parar de ir pra gandaia durante a semana.

eu queria que fosse fácil assim.

mas você nem imagina que dois meses antes daquele dia eu já fantasiava com seus ois, que quando eu disse que ia passar, repeti essa frase à exaustão como um mantra por dias e dias durante meses pra me convencer que aquela dor não era pra sempre. que meu outro compromisso era sair o quanto antes de perto de você e daquela mulher infinitamente mais interessante e absurdamente mais bonita que eu, e chegar em casa a tempo de chorar assistindo a reprise de de repente 30. e que aquele cara do outro dia era meu irmão, meu amigo gay ou uma potencial pegação que eu arruinei contando o quanto queria estar com você e como você me desprezava. você não faz idéia que a minha gandaia foi sair pra beber com as amigas, duas horas depois olhar o celular sem nenhuma chamada perdida e ir pra casa ouvir gal costa até 4h da manhã. bêbada. e escrever num blog melodramático.

você não entende que eu passei minha adolescência escolhendo os presentes e escrevendo as cartas dos namorados das minhas amigas, que eu conto nos dedos de uma das mãos os homens com quem fui fácil e que naquela noite, eu não acordei do seu lado não porque não quero intimidade, mas porque senti vergonha de ser pega te olhando dormir.

você só entendeu quem eu estava, não quem eu sou.

então

existem ao menos três tipos de homens que toda mulher possui ao longo da vida. o primeiro namorado, o amor-eterno-amor-verdadeiro, e o fogo no cu.

o primeiro namorado arruina sua vida. perceba, esse “primeiro” é meramente ilustrativo, uma vez que ele não necessariamente é o primeiro cronologicamente, mas é sempre o primeiro que despedaça seu coração em mais pedaços do que seu melhor professor de biologia seria capaz de contar. e ele não precisa nem ao menos ser seu namorado, veja só. o primeiro namorado SEMPRE arruina sua vida, te faz ouvir roxette no último volume abraçada ao travesseiro e chorando. e ele tem que ser o homem mais sedutor ever, mesmo que você saiba que no fundo no fundo ele parece mais a placenta do filhote de capiroto. é por ele que você cria um blog pra falar de como dói seu coração. foi por causa dele que você escreveu músicas e virou sucesso internacional. é nele que você pensa quando assiste qualquer comédia romântica onde um suposto cafajeste vira um homem fiel. depois dele você conheceu shakespeare, drummond, e já perdeu as contas de quantas vezes se imaginou cantando “olhos nos olhos” do chico olhando pra ele. e oitenta anos depois, é por causa dele que suas pernas bambeiam durante um reencontro. enquanto isso ele tá completando o álbum dele e mal consegue lembrar a cor do seus cabelos. depois do primeiro namorado é quando você vira mulher, esperta, ligada. é quando você pensa que “oi, a porra da buceta é minha”, quando decide que passou da hora de jogar seus contos de fada fora, que o mundo é diferente, que amor é amor, romance é romance, traição é traição e um lance é um lance. mas isso só depois que você já aprendeu a beber vinho, cachaça, cerveja, já achou que bartô galeano fez uma música que é a sua cara e já se rasgou maquiada num sábado à noite, depois de não conseguir se divertir por 5 minutos numa festa pensando no mancebo.

e o amor-eterno-amor-verdadeiro. ah, o amor… todas as mais lindas canções de amor foram feitas pensando naqueles olhos, naquele sorriso. tudo é primavera quando ele tá por perto, seu coração enche de glitter quando ele passa. é aquele amorzinho platônico, você volta a ter 13 anos, a esconder o rosto quando sorri pra ele, desenha coraçõeszinhos no boxe do banheiro com suas iniciais dentro, se arruma bonitinha mesmo quando tem certeza absoluta que não o verá. o amor-eterno-amor-verdadeiro pode ser fã de capital inicial que você vai gostar, pode ter o pinto mínimo e não mandar bem no oral que você vai gostar, pode demorar 2h pra gozar e você vai gostar, pode escrever “agente” que você vai esconder dos seus amigos – uma dica: se o cara tem o pinto pequeno, a gente até evita comentar porque ele não tem culpa. mas escreveu errado é caixão. normalmente os suspiros nunca se acabam pelo amor-eterno-amor- verdadeiro, nem os seus, nem os da sua mãe, que se o conhecesse certamente iria adorar tê-lo como genro.

aí vem o fogo no cu. é com fogo no cu que você se cura dos anteriores, então eu sugiro que você o conheça por último. o fogo no cu não pode ser seu amigo, não pode ser nem amigo do seu amigo, ele tem que ser um total e completo desconhecido (é melhor que seja, ao menos). o fogo no cu não tem passado, não tem futuro e não tem presente, tem apenas a pegada mais incrivelmente perturbadora que a sua mente é capaz de processar. um jeito de falar, de olhar, de segurar… que seu vestido quase levanta sozinho quando sente a presença. você tá curtindo a festa e chega o fogo no cu? run to the hills, porque se ele chegar perto sua pele vai querer desgrudar de você e a única forma de não perdê-la é  com ele segurando muito forte as suas coxas.

a combinação explosiva é se um único exemplar reunir dois desses tipos. aí pode tirar a semana de folga, colocar as pantufas, preparar o delivery da pizza e o pacote de m&m porque as noites vão ser longas…

morrer um dia de cada vez

“você tem duas alternativas”, disse a vida.

eu devia ter 6 ou 7 anos mas me lembro claramente quando, depois de propor uma escolha sobre alguma coisa – qualquer coisa – pro meu irmão, eu completava com “uma das duas coisas ou então você morre. ou o mundo acaba. ou todas as pessoas que você ama morrem.”. e eu lembro de ter plena consciência de que aquela escolha seria impossível se fosse real, que seria uma situação desesperadora. e eu, libriana que sou, me fiz essa pergunta mentalmente durante todos esses anos, sempre que precisava sair de cima do muro. muitas das vezes eu escolhi por impulso, por desespero, por medo. em outras eu teria matado todas as pessoas que eu amo e me escondido num buraco bem fundo depois.

sabe a piada do moço que espera a salvação da enchente em cima do telhado mesmo aparecendo três botes e acaba morrendo afogado? pois bem. o primeiro bote estava indo pra ilha do desapego. na ilha do desapego você não sabe direito o nome das pessoas nem de onde elas vieram e não se importa muito com isso, na verdade. porque na ilha do desapego você só paga impostos caso se importe com alguém. o segundo bote estava indo pros montes conformados, também conhecido como é-o-que-tem-pra-hoje e isso é auto-explicativo. o terceiro e último bote ia pro vale da desistência, que fica muito ao sul e é frio e as pessoas apenas existem e amaldiçoam os habitantes das outras terras, mas rezam toda noite para que um desapegado o convide pra festinha de sábado.

a vida me deu opções e eu não soube escolher. eu não quis acreditar que não existia uma quarta, e eu não pude aceitar que era aquilo. que era aquilo. eu nunca saí do meu telhado mas vi as paisagens mais bonitas num olhar, ouvi os sons do mundo inteiro numa gargalhada, senti os sabores de tudo que foi vivo um dia. e por essa ousadia, eu pagaria o preço de não estar em lugar nenhum, de não ser reconhecida nas ruas, de nunca pertencer.

e todos os dias esses botes voltam pra salvar minha vida. mas se é essa a salvação, eu escolho morrer.

quando o sol perder a luz

era uma vez o sorriso mais lindo do mundo. o sorriso mais lindo do mundo estava sempre muito bem acompanhado: um par de braços que faria você dispensar um valentino longo vermelho; o dorso perfeito – se julio verne o tivesse conhecido perceberia que oitenta dias são insuficientes, uma vez que seus dedos passariam a eternidade passeando apenas naqueles centímetros, que dirá o mundo; os olhos não se podia ver a olho nu quando totalmente abertos; e o cheiro que estava sempre por perto do sorriso… ah, os cheiros.. o sorriso mais lindo do mundo caminhava num ritmo que era só dele, e se a cada passo fosse ouvido um acorde, ao final de uma jornada teríamos um bolero. o sorriso mais lindo do mundo era leve, era ingênuo, era sincero, era feito de tudo o que você sempre quis da vida. desde que o sorriso mais lindo do mundo se abriu pela primeira vez diz-se até que enquanto ele durar as calotas polares continuarão a derreter. certa vez você cogitou sugerir ao louvre expor o sorriso mais lindo do mundo, mas depois decidiu que o melhor lugar pra ele estar era colado aos seus lábios.

um dia então o sorriso mais lindo do mundo se fechou por uns instantes. primeiro totalmente, depois se abriu de novo com a língua entre os dentes, estalou-a no céu da boca e soltou-a: MOR-TAN-DE-LA.

fim.

dias mais perfeitos

eu sou assim. eu fui lá e imaginei uma casa, com quintal, cachorro. os azulejos coloridos na varanda, a rede no final da tarde. de manhã eu praticava ioga, respirava o ar puro, sentia o cheiro de café fresquinho vindo da cozinha. minha coleção de sapatos de um lado, 5 gavetas quase cheias do outro. imaginei almoços de domingo, filminhos de sábado, e os abracinhos de todos os dias. dançar com vinho e amigos até tarde. e decidir colher alguma fruta no quintal pro suco que curaria minha ressaca, já que vinho faz isso comigo. e é claro que eu imaginei o sexo porque de quê me adianta uma casa grande com quintal se não se pode fazer sexo na escada, na varanda, na rede, no balcão da cozinha, no tapete de ioga? e um ofurô.

dom cobb se giletou no recalque porque precisou ir três sonhos lá dentro, enfrentar a lembrança da esposa falecida e de dois amuletos pra conseguir inserir uma ideia na cabeça de alguém. mas ele, bastou ele sorrir pra mim que várias ideias se multiplicaram como baratas, simples como uma idéia, tomando conta dos meus sonhos.

 

quando o dr. rey veio ao brasil trazendo sua luz e seus músculos eu ri do estetoscópio no pescoço e principalmente da cinta. mas hoje eu me olhei no espelho e vi uma cinta cobrindo todo o meu corpo. minhas roupas, que foram sendo compradas somente se coubessem a minha cinta, se a escondessem, se ninguém pudesse perceber. as fotos que tirei com vergonha, as frases que escrevi com medo, as coisas que deixei de aproveitar, insatisfeita. foram longos anos vestindo ela todos os dias, dormindo e acordando com ela, pra que ninguém visse as imperfeições que ela disfarçava. imperfeições…

eu sempre tive medo de mostrar cervejinha do domingo, a preguiça de ir pra academia na quarta, o prazer que sinto com um risoto, uma macarronada ou um pastel. e não queria que ninguém visse a forma que cada uma dessas coisas tomaram em volta de mim, por baixo na minha cinta dr. imbecil, que foi contruída com muita babaquice. não sabia viver sem ela.

uma vez o marcelo me disse que eu só dava pra babaca. deve ser verdade, porque até os 21 eu não me referia a nenhum cara com quem eu saía como homens. demorei pra perder o hábito infantil de chamá-los de menino ou garoto. acontece que de uns tempos pra cá eu tenho visto homens interessantes, tenho saído com homens bacanas. homens que, como eu, riram da cinta dr. rey e me mostraram que na verdade era ela que me fazia ter aquela forma esquisita que eu via no espelho. e me desfiz da cinta, dos anos de repressão, da culpa de ser feliz. minha bunda continua grande sim, mas foi quando me livrei da cobrança alheia que percebi que o que me incomodava não era o tamanho dela, mas as pessoas que a encaravam. e fiquei sem entender por quê é que com tantos ipês florescendo na cidade, algumas pessoas tinham que justamente olhar pra minha bunda, que tanto odeiam.

balada para un loco

estávamos lá reunidos, mas não tínhamos começado. era aquele preparatório, eu estava organizando as taças enquanto alberto abria o vinho. álvaro recusou e pediu água, o whisky de quinta ainda estava vivo e ativo na memória. ricardo contou uma piada que ouviu por aí e gargalhamos juntos. coloquei as taças em cima da mesa, nos servimos, e estávamos prontos pra começar. “algo leve”, álvaro pediu, “minha cabeça não está das melhores”. mas antes que pudéssemos sugerir o tema da noite, uma melodia suave, quase imperceptível percorreu a sala e subiu pela espinha. era ele: piazzolla chegou lançando uma única carta em branco sobre a mesa. não havia nada escrito mas todos sabíamos o que significava. e não poderíamos fugir, era como o elefante cor-de-rosa na sala. um elefante cor-de-rosa dançando tango. ele sorriu e se acomodou para ver até onde iríamos.

eu fui logo enchendo o copo mais uma vez, não queria ter que iniciar aquela conversa. mas antes que eu pudesse dar o primeiro gole ricardo quebrou o silêncio:

– se penso ou sinto, ignoro quem pensa ou sente

– mas pensar uma flor é vê-la e cheirá-la… interrompeu alberto.

– ser o  que penso?! penso tanta coisa! e há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! então serei sempre o que não nasceu pra isso. serei sempre o que tinha qualidades…

– álvaro, tens sol se há sol, ramos se ramos buscas, sorte se a sorte é dada.

– é disso que falo. não sou nada, nunca serei nada. não posso querer ser nada, e a parte disso tenho em mim todos os sonhos do mundo.

– ora, álvaro! somos demais se olhamos em quem somos. ignorar que vivemos cumpre bastante a vida!

– não, ricardo, não posso. chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, vejo os cães que também existem, e tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, e tudo isto é estrangeiro, como tudo. vivi, estudei, amei e cri. e hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu… vês o quê ele me pede, alberto?

– o que vejo é que não basta abrir a janela para ver os campos e o rio. não é o bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. é preciso também não ter filosofia nenhuma.

– te acalmes, álvaro! quero dizer que o que sentimos – e não o que é sentido – é o que temos.

– pois então o que devo fazer? existir, apenas? como um lagarto a quem cortam o rabo? que te parece essa idéia?

– que importa isso a mim? se eu pensasse nessas cousas, deixaria de ver as árvores e as plantas… entristecia e ficava às escuras. e assim, sem pensar tenho a terra e o céu.

– bah…! estou cansado! quero sentir tudo de todas as maneiras, viver tudo de todos os lados, ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo!

foi então que de um canto, ouviu-se o arrastar de uma cadeira. fernando, que por enquanto apenas observava a tudo, levantou-se calmamente, serviu-se de mais uma dose, pousou a mão em meu ombro e calou-me de todas aquelas vozes: “menina, não tente entender. viver é não conseguir”.